Liderança no futebol: uma introdução
A liderança é um fenômeno que emerge com frequência no ambiente do futebol. É comum que, nos esportes coletivos, a liderança seja cuidadosamente observada e exemplos de situações de liderança e de grandes líderes sejam exaustivamente listados e analisados. Vários artigos, livros, filmes e reportagens são produzidos todos os anos para dissecar as atitudes daqueles líderes que obtêm sucesso.
No futebol, não é diferente, e algumas características culturais tornam isso ainda mais presente. Por exemplo, cada time é obrigado a nomear um líder, o capitão, e esse líder é devidamente identificado por uma braçadeira, de modo que todos os participantes e espectadores do jogo sabem quem ele é.
Considerando a importância da liderança no futebol, parece conveniente analisar e estudar esse fenômeno, a fim de identificar e qualificar a sua função e procurar aumentar a probabilidade de sucesso dos times por meio de uma melhor liderança.
Mas, para começar essa análise, é necessário tentar responder uma pergunta nada fácil: o que é liderança?
O QUE É LIDERANÇA?
Não existe um conceito “fechado” de liderança, que seja consensual entre todos que estudam esse fenômeno. Esse conceito é alvo de muitos debates, mesmo no meio acadêmico[1], a depender do enfoque que se dá e das premissas de que se parte. Para os fins do presente artigo, a opção é pelo seguinte conceito: a liderança é um fenômeno social complexo, que consiste no processo de influenciar pessoas para que elas atinjam seus objetivos[2].
O conceito acima tem três “palavras-chave”: complexo, influenciar e objetivos. A liderança é complexa porque conta com uma série de fatores que interagem entre si e estão interligados. A influência é a característica chave que diferencia a liderança dos demais comportamentos: há, na liderança, a intenção deliberada de “indicar o caminho”, “alterar o curso”, agir no sentido de modificar o liderado. Mas não se trata de qualquer influência: a liderança é a influência que pretende auxiliar o liderado para que ele atinja os seus objetivos, ou seja, é colaborativa e auxiliar.
NÍVEIS DE ABSTRAÇÃO DA LIDERANÇA
Desse conceito, é possível inferir que a liderança não se limita a grupos e organizações. Na realidade, é possível identificar a liderança em quatro níveis de abstração. O primeiro deles é a liderança individual ou autoliderança, que consiste na capacidade de uma pessoa influenciar a si própria; nesse nível, a liderança se confunde muito com o autoconhecimento e com as características individuais e atitude geral da pessoa, já que é difícil dissociar e identificar de forma isolada atitudes típicas de liderança.
O segundo nível de abstração é a liderança diádica ou interpessoal, que ocorre quando existem somente duas pessoas envolvidas no processo. Essa liderança é mais facilmente observável, e seria possível até mesmo dizer que em qualquer interação entre duas pessoas é possível emergir o fenômeno da liderança, considerando que em grande parte das interações entre pessoas há a intenção de alguma das duas partes de influenciar o comportamento da outra. Quando essa intenção de influência é colaborativa, no sentido de que a pessoa influenciada atinja seus objetivos, estamos diante de um evento de liderança. Nesse nível, ainda que a liderança possa ter apenas uma pista, ela tem duas vias: a relação líder-liderado pode acontecer em ambas as direções, e, dependendo do contexto, os papéis podem se alternar rapidamente, como numa conversa entre dois amigos ou colegas de equipe. Imagine uma conversa entre dois defensores para definir a marcação em uma cobrança de escanteio, por exemplo.
O terceiro nível de abstração é a liderança de grupo. No ambiente do futebol, essa liderança é muito mais facilmente identificável, já que boa parte das interações mais importantes no futebol se dá nesse nível. O grupo se caracteriza por um conjunto de mais de duas pessoas que se relacionam diretamente umas com as outras; nesse nível, a liderança ganha muito em complexidade, considerando que há nas interações muitas “pistas” e “vias” de comunicação e interação, e o grupo pode ser tratado de maneira geral ou fragmentada. Imagine, por exemplo, uma situação em que o treinador explica o esquema tático que será adotado e, logo na sequência, passa a dar instruções específicas para o setor defensivo, enquanto um jogador de meio-campo instrui os atacantes sobre uma determinada movimentação na fase ofensiva. Nesse nível, começam a emergir os fenômenos estudados por campos como a psicologia social.
O quarto e último nível são as organizações, que poderiam ser grosseiramente qualificadas como “grupos de grupos”. Nesse nível, não há necessariamente interações diretas entre todas as pessoas que a compõem, e isso impacta diretamente a quantidade e qualidade dos comportamentos de liderança. Como a relação entre líder e liderados não é necessariamente direta, “olho no olho”, esse nível de liderança impõe situações completamente diferentes daquela observada nos demais níveis, e isso impacta diretamente toda a análise. É possível imaginar, por exemplo, a posição de um presidente de clube, cujas ações e decisões impactam toda a organização, mesmo que muitos dos seus colaboradores nunca o tenham visto; a liderança que esse presidente exerce é, na maior parte, no nível organizacional.
UM FENÔMENO COMPLEXO
A liderança é um fenômeno complexo porque é uma função multivariável[3], ou seja, há múltiplas variáveis que a influenciam, as quais interagem umas com as outras e afetam o resultado. Essas variáveis podem ser classificadas em três conjuntos: os líderes, os liderados e as situações. A liderança ocorre quando é possível identificar variáveis pertencentes a esses três conjuntos.
A complexidade da liderança emerge precisamente do fato de que essas variáveis interagem entre si de formas imprevisíveis e não-lineares, de modo que uma pequena alteração em uma delas pode causar um fenômeno de liderança completamente diverso. Existem, inclusive, escolas de estudo da liderança focadas em cada um desses conjuntos. Neste texto, visando preservar a complexidade do fenômeno da liderança, a abordagem escolhida será a comportamental, que não ”disseca” esses conjuntos, focando-se nos comportamentos de liderança de forma global, sem separar o papel dos líderes, liderados e situações no momento da análise.
VALE A PENA ESTUDAR LIDERANÇA?
Não é raro identificar, não só no senso comum mas também nos estudos acadêmicos, uma tendência de qualificar a liderança como um “dom”, no sentido de ser algo intrínseco do líder. “Fulano é um líder nato” é uma frase muito comum que retrata essa tendência. Mesmo no ambiente acadêmico, os estudos de liderança começaram com o objetivo de identificar quais seriam aquelas características (físicas, sociais, psicológicas) que fariam de alguém um grande líder[4]. Entretanto, já existe um grande corpo de estudos que refuta a hipótese de que a liderança é um traço de personalidade[5], e evidencia que ela pode surgir em diferentes contextos, com praticamente qualquer pessoa exercendo tanto o papel de líder quanto o de liderado. Há, portanto, uma demanda por estudar quais seriam esses contextos e quais seriam os comportamentos de líder e liderado que emergiriam desses contextos.
Porém, a própria complexidade desse fenômeno faz com que estudá-lo seja uma tarefa inglória. Além das dificuldades comumente observadas em qualquer estudo social, como a dificuldade de conduzir experimentos, isolar variáveis e replicar resultados, ainda é muito difícil identificar, no corpo de estudos, aquilo que provavelmente muitas pessoas esperariam quando se dedicam a estudar o tema: a “fórmula mágica da liderança”, ou seja, o conjunto de habilidades, comportamentos e modos de pensar e agir que fariam de uma pessoa um bom líder em qualquer situação. Mais difícil ainda é encontrar uma espécie de “guia da liderança”, ou seja, um processo organizado pelo qual uma pessoa poderia “treinar” para se tornar um grande líder.
Diante disso, surge a pergunta: vale a pena estudar liderança? A resposta é sim. Ainda que não seja possível se tornar um grande líder somente por meio do estudo da liderança, esse estudo permite conhecer os seus principais componentes, as principais variáveis que determinam o fenômeno da liderança, identificar o que é uma boa liderança e uma má liderança (ou uma liderança efetiva e uma inefetiva), e especialmente ganhar um conjunto de ferramentas que cada pessoa pode testar e validar de acordo com a sua própria realidade e experiência, de modo que, num processo mais ou menos organizado de prática deliberada[6], cada um possa identificar como, quando, onde e com quem pode exercer uma boa liderança.
Essa conclusão decorre de um aspecto que é muito importante reconhecer: ao mesmo tempo que a liderança pode ser estudada pela ciência, ela continua sendo uma arte. Estudar a liderança pode até ajudar, mas não é suficiente nem necessário para que alguém se torne um grande líder. Sempre haverá pessoas que conseguem ter comportamentos de liderança tidos como bons ou efetivos sem ter estudado o tema, e sempre haverá quem compreenda o tema e suas teorias com maestria, mas não consiga colocar esse conhecimento em prática.
No ambiente do futebol, em especial pela sua importância, estudar a liderança permite aumentar a probabilidade de, dada uma determinada situação e um determinado grupo de liderados, escolher ou formar os melhores líderes.
PRÓXIMO PASSO: COMPORTAMENTOS DE LIDERANÇA
Neste texto, pudemos aprender mais sobre o papel da liderança no futebol, assim como sugerir uma resposta para a pergunta “o que é liderança?”. Também vimos quais os níveis de abstração em que o fenômeno de liderança acontece, e que se trata de um fenômeno complexo ou função multivariável. Por fim, vimos que sim, vale a pena estudar a liderança, ainda que esse fenômeno seja, ao mesmo tempo, ciência e arte.
O próximo texto da série abordará os comportamentos de liderança e a principal forma de classificá-los. Vejo você lá!
[1] HUGHES, Richard L. Leadership: enhancing the lessons of experience. McGraw-Hill/Irwin: 2011, 7th ed., p. 4.
[2] Id., p. 5.
[3] Id., ibid.
[4] YUKL, Gary. Leadership in Organizations. Prentice Hall: 2012, p. 13.
[5] Id., ibid.
[6] Na forma prescrita por ERICSSON et. al. em The Role of Deliberate Practice in the Acquisition of Expert Performance, in: Psychological Review 1993, Vol. 100. No. 3, 363-406.